quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

O caos e a folia

No princípio era o caos. À volta do globo, em redor de todas as épocas, as mitologias concordam que antes da vinda de Deus, ou dos deuses, as coisas estavam por criar, eram informes, não tinham forma fixa. As pirogas dos aborígenes voavam, os homens tinham características animais e assexuadas, e os animais falavam como hoje nas fábulas; eram tempos fabulosos. Quando os deuses se metem a criar, os deuses nada mais fazem do que dar forma às coisas, assentá-las em formas fixas, libertar-nos desse caos de contínua fluidez, de permanente mudança de eterno parecer, ser e não ser. O sagrado inquietante, o mysterium tremendum (Rufdolf Otto), o desconhecido da ausência de formas, e assim de limites, é substituído (embora nunca de todo) por referências, por pontos fixos divinos ou divinizados. Assim criado o mundo, assim assente o mundo no divino, assim fixadas as coisas em suas formas, resta ao homem zelar pela criação. Todos os tabus religiosos (hoje chamados políticos, sociais ou morais), todos os interditos, visam manter, visam conservar a criação. Talvez o exemplo mais óbvio: tudo o que directa ou indirectamente represente a transgressão interior / exterior ou dentro / fora, tudo o que sugere o violar da forma, tudo o que é janela para o caos sagrado e informe é sagrado e é tabu; em todas as culturas o sangue é sagrado e é tabu, o trespassar é sagrado e é tabu, o penetrar é sagrado e é tabu (mesmo nas culturas de indumentária mais leve ou “leviana” só no contexto de uma cerimónia sagrada, contida dentro de ritos, de limites divinos, as relações sexuais poderão ser públicas). Não espanta que entre nós, tão laicos e modernos, os palavrões (palavras de cariz sexual logo invocadoras de potências criadoras, mágicas) sejam tabu, o coçar o corpo, o abrir a boca, ou o limpar o nariz de substâncias macacas interiores e informes seja tabu.

Mas para manter a criação não basta todo um sistema político-religioso de interdições; a interdição não livra nem a criação nem as criaturas do desgaste. É então preciso que, anualmente, antes do fim do inverno acabar, se garanta o ressuscitar do mundo, se re-presente aquele caos universal anterior à criação. E re-presentar o caos é transgredir. Que durante este período sagrado, o antes interdito seja agora obrigatório. O carnaval, as diferentes máscaras que as pessoas ou as diferentes pessoas que as máscaras incorporam, é, nesse constante trocar e baralhar, uma relíquia da simulação desse caos, dessa liquidez informe e primordial. É o período de excepção, o período da festa, da “loucura”, do não limite. Descende o carnaval das festas dos loucos na Idade Média, estas das saturnais romanas com profundas ligações às cerimónias bacantes e não faltam paralelos em redor do globo, por exemplo nas cerimónias de potlacht (Malinowsky). Chicoteia-se o senhor, deita-se o escravo com a senhora, corre o vinho a jorros, esbanjam-se, despedaçam-se, oferecem-se ao desafio os bens mais preciosos, as formas não resistem. O mundo ao contrário, chama-lhe Caillois. Todas estas acções transgressoras são sagradas, são janela para o sagrado, simulam o mundo primordial, o abismo informe, líquido, oceânico, titânico, podemos, no contexto ocidental, chamar-lhe atlante. Toda a medida, toda a mesura, todo o padrão e normalidade é trespassado. Despedaçam-se os limites, despedaçam-se os nãos; e com eles as formas para que estas, com o mundo, se possam re-criar, e o interdito, os limites, possam tornar a vigorar, com mais força, na verde e verdadeira Primavera. Mas a excepção e o transgredir não se confina ao carnaval e sua directa ascendência. Tudo o que é excesso, esbanjamento, destruição e exuberância, tudo o que é festa e guerra (e mesmo o jogo para Huizinga) partilha dessa transgressão, dessa ubris que trespassa os tabus mais anquilosados, o pesadelo de Platão e, pode dizer-se, duma certa forma de encarar a razão e o racional. O tempo de excepção que convoca, recria, re-presenta o caos informe e criador de onde todo o cosmos, todos os mundos saíram, é folia criadora, é a folia do caos.

Na folia já se tem um desfolhar, um trespassar do tabu dentro/ fora. E no caos sempre se tem o sagrado, tão perigoso de contágio, logo interdito – o homo sacer, o leproso, o epiléptico, o louco loquaz (nessa folie, nessa loucura especialmente predisposta a vocalizar palavrinhas, palavrões, palavreado e conceitos interditos, criadores), ou o detentor de qualquer outro mal sagrado que o digam. A representar o caos, a folia não deixa de estar confinada a uma ordem, não deixa de obedecer a um fim; a folia re-presenta o caos para o caos não se fazer definitivamente presente; combate o mal dando-lhe do mesmo remédio. E a folia é também sagrada por não deixar de obedecer à economia do sagrado: sacrificar uma parte (oferendas, sacrifícios à divindade), aqui numa concessão temporária ao caos, para assegurar o todo (a vida, as colheitas, a descendência), aqui evitar a queda completa no caos, nesse império não perecível, sem perímetro que o contenha, sem fim. Antes que occidente se oxide de vez, antes que o sol mergulhe sem remédio no oceano atlante e informe, transgrida-se este cosmos mal parido, despedacem-se, numa orgia de bacante, as suas verdades gastas, adulteradas, complexadas, cada vez mais líquidas e informes, convoque-se em folia o caos para que outro cosmos possa renascer.

Sem comentários: