quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

CONSIDERAÇÕES SOBRE A SOCIEDADE JUSTA

I

A ideia de Justiça é, também, uma ideia de ordem e de harmonia. Uma sociedade justa terá que ser, forçosamente, de alguma forma, uma sociedade ordenada. No entanto, o homem, apesar de ter tentado sempre ao longo dos tempos controlar o meio que o rodeia, é incapaz de ordenar de forma eficaz, não apenas o contexto em que vive como, também, a própria sociedade que forma: até hoje a sociedade justa está por encontrar. Talvez a causa de tamanho desaire e falhanço humano resida no facto de o Homem não ser um elemento estático mas sim, pelo contrário, sofrer de forma constante e perpétua os efeitos da evolução das coisas como, também - e quiçá principalmente - ser influenciado directamente pelo seu próprio processo evolutivo. A vida dos homens e das coisas é dinâmica: tanto uns como os outros (e uns com os outros) interagem de forma imprevisível e perfazem uma narrativa infinita da qual não se conhece o princípio, o fim ou, sequer, com absoluta certeza as cenas dos próximos capítulos. Da mesma forma, também as interpretações sobre o que a ideia de justiça significa variam com os tempos e com as comunidades. Ou seja: tal como o homem varia no tempo e no espaço, assim varia com ele as suas leis e os seus conceitos. No entanto, a ideia de Justiça que preside à busca do Homem não se entende como variável: de alguma forma, pretendeu-se sempre, ao longo dos tempos, que haveria uma Justiça superior, como que divina, de uma ordem universal, uma Lei que ordenando o universo, também a ela os homens deveriam obedecer para se ordenarem a si próprios. Aqui passamos para leis de carácter universal: eternas e imutáveis, portanto. Talvez por isso o Homem sempre procurou encontrar a fórmula secreta que lhe permitisse ordenar a sociedade justa. No entanto, todos os conceitos do Homem, sendo estáticos no tempo (porque pretendem derivar de uma lei imutável de carácter superior) acabaram por ver-se ultrapassados pelo percurso natural da evolução humana e das coisas. A conclusão parece ser que não podem os homens reger-se por um sistema estático no tempo porque não são eles próprios estáticos e previsíveis no tempo. Se a vida dos homens é dinâmica e as suas interacções imprevisíveis, então também os seus sistemas sociais teriam de ser capazes de ter em si mesmos uma dinâmica que lidasse com a constante evolução e com a imprevisibilidade do futuro. Ao mesmo tempo se a vida dos homens em sociedade não é justa coloca-se em causa a existência sequer de uma ideia superior de Justiça: como poderia num universo justo e ordenado por uma lei superior existir uma parte desse mesmo universo (o mundo dos homens) que não fosse também ele justo e ordenado?

II

A evolução não podendo ser pré-determinada, porque o seu resultado não pode ser conhecido a priori , nunca poderá ser devidamente controlada - portanto ordenada - pelos homens. Nesse sentido, a sociedade humana, porque é afectada em larga escala pelo processo evolutivo, nunca poderá ser uma sociedade justa se a justiça (ordem) dessa sociedade depende das leis estáticas dos homens. No entanto, a ideia de que existe uma lei superior de justiça permanece no nosso imaginário (e desígnio) filosófico: o ideal de Justiça será algo que o Homem, através da sua consciência racional, poderá eventualmente a ele aceder um dia. Neste caso, se a ordem justa for transcendente ao Homem, o esforço humano de ordenar  - tornar justo - o mundo dos seus assuntos, porque a Lei universal (a existir) nos está vedada apenas agora e não sempre, corre o sério risco de redundar num fracasso retumbante: ou as leis humanas seriam inúteis porque a ordem natural das coisas não poderia ser subvertida; ou, podendo tal lei universal ser pervertida por força da nossa racionalidade imperfeita, as leis humanas seriam perversas porque alterariam essa ordem natural universal em nome de algum valor humano que, sendo humano - portanto inferior à lei superior - apenas a perverteria e prejudicaria. Assim, considerando que as leis humanas, sendo estáticas, não são capazes de, por si só, oferecer-nos a sociedade justa e a Lei universal, a existir, nos estar vedada, a questão que sobeja é como é possível ao Homem intentar a sociedade justa? Não será melhor, no caso de aceitarmos a noção de uma ordem divina, a deixarmos funcionar livremente entre nós como que uma mão invisível da justiça humana? Ou, no caso contrário, ao não aceitarmos tal ordem divina, não será forçoso que se aceite também então que a vida justa dos homens é um intento impossível e por isso o desígnio filosófico um objectivo inútil?

III

A primeira opção seria esperar que a mão invisível que gere a dinâmica das coisas, sendo universal e uma Lei superior, fosse ela própria uma condição de justiça. No entanto, porque o mundo dos homens não se prova justo tal hipótese é, forçosamente, descartada. Assim, ou essa lei superior de justiça existe e é pervertida pela acção humana ou essa lei superior simplesmente não existe e caberá apenas ao Homem inventar e criar uma sociedade que entenda ele próprio como justa. Neste segundo cenário a sociedade justa será, portanto, meramente a sociedade ordenada: um grupo de humanos que consiga obter a ordem e onde os seus elementos se sintam integrados num todo harmonioso (mesmo que não pacífico) e que aceitem a ordem das coisas que entendem na sua perspectiva individual, por mais limitada que seja, como natural, seria então uma sociedade humana justa. Neste caso, a sociedade justa - mais correctamente: as sociedades justas - seria algo banal e corriqueiro que abunda na história da humanidade. Sobra-nos, no entanto, o primeiro cenário: aqui haverá uma chave, apesar de escondida pelo véu de ignorância da existência humana, para a sociedade justa que reside na pureza do próprio conceito de justiça. Já percebemos que as suas leis não poderiam ser estáticas, teriam que ter um carácter dinâmico para acompanhar a evolução do Homem. No entanto, ao mesmo tempo, para que esteja tal sistema de leis de acordo com a lei objectiva, universal e eterna que representa a pureza do conceito 'Justiça', também teria que ter algo de estático e imutável. Ou seja: a sociedade justa dos homens teria que ser uma sociedade regida por um conjunto de normas que sejam, por um lado, adaptáveis à natureza dinâmica da evolução do homem e da imprevisibilidade do futuro e, por outro lado, imutável na sua essência que estaria de acordo com a lei superior universal. Falamos de uma imutabilidade dinâmica. Um aparente paradoxo que poderá ser traduzido da seguinte forma: uma lei dos homens para ser justa tem que estar conforme a lei universal; ora, esta sendo eterna e universal - portanto imutável -  obriga a que a lei justa do Homem também o seja. Por outro lado, a mesma lei dos homens para ser justa tem que ter a capacidade de adaptar-se a outra lei universal: a da evolução do homem. A solução parece ser apenas uma: uma lei justa, tendo que ser eterna para estar conforme a imutabilidade de uma lei universal, nunca poderá ser dinâmica e, por essa mesma razão, ao Homem resta caminhar para ela guiado por sistemas que, sendo injustos, serão progressivamente (numa situação óptima) cada vez mais justos. Ou seja: não havendo solução justa para o problema humano no agora, sendo portanto a sociedade justa um ideal sempre por cumprir, a lei do homem não pode ser justa, per si, mas pode caminhar - tender -  para a justiça. Desta forma a dinâmica da lei confere-se no processo de tornar mais justo e a imutabilidade da mesma confere-se no fim que preside ao processo.

IV

Como guiar este processo de caminhar para a justiça? Como apreender o seu fim, ou seja: como vislumbrar o conceito puro de justiça que nos ilumine o caminho a percorrer? A chave para resolver tamanha questão residirá, forçosamente, no (aparente) paradoxo da imutabilidade dinâmica acima abordado. Este paradoxo, mais do que a chave da sociedade justa, oferece-nos o tal vislumbre de que precisamos. Se uma coisa poderemos certamente concordar será que o conceito puro de justiça - ordem divina e universal - é racionalmente superior às interpretações humanas desse conceito puro - ordem humana. Assim sendo, a razão pela qual o conceito puro de justiça nos está vedado é porque nós racionalmente não o conseguimos apreender: por definição o irracional não pode compreender o racional. Assim, aceitando que o mais racional abrange o menos racional enquanto que o menos racional não consegue abranger o mais racional, somos igualmente forçados a aceitar que formas superiores de entendimento da justiça apenas serão acessíveis ao Homem no limite da sua racionalidade e em fragmentos - vislumbres - que apontem, a muito custo humano, o caminho da sua própria essência racional superior. Que melhor forma conhecemos nós de testar os limites da nossa própria racionalidade do que através de um paradoxo? E que exemplos de normas paradoxal e simultaneamente eternas e dinâmicas poderemos nós pensar?

V

Aceitando todo o raciocínio atrás explanado, parece-me que sobra a obrigação de aceitar a ideia de que o ordenamento legal de uma sociedade humana será falível, injusto e efémero. No entanto, poderá caminhar num sentido de cada vez maior justiça se for fundado e justificado à luz de normas que passíveis de compreensão humana são também elas próprias portadoras de uma universalidade de ordem divina. Assim, quando procuramos resolver o nosso paradoxo deveremos pensar mais em princípios ou, em linguagem mística, mandamentos, que nortearão a edificação do sistema legal do que propriamente em normas legais gerais e abstractas de aplicação prática. Pensando em mandamentos, analisemos o primeiro mandamento concedido à tradição judaico-cristã: não matarás. Configura ele o carácter universal que procuramos? 'Não matarás' implica não matar nunca, no entanto, não será difícil a qualquer um de nós vislumbrar situações onde a justiça do acto poderá residir precisamente em matar. O caso de legítima defesa de uma agressão ilegítima ou a protecção de um filho indefeso face ao bárbaro assassino afiguram-se logo como infracções literais àquele princípio: é um exemplo onde o carácter estático da sua essência não abrange o carácter dinâmico e complexo da vida dos homens. A espécie de princípio que procuramos será então diferente: uma norma que nos diga que não devemos matar mas que abarque simultaneamente a obrigação de matar quando o ideal de justiça assim o exigir.

VI

A procura deste mandamento racional poderá levar-nos ao paradoxo que Karl Popper ofereceu ao mundo através do seu Princípio da Refutabilidade. Considerando que a verificação empírica de determinada realidade apenas pode ser confirmada através de processos de refutação de verificações empíricas anteriores então percebemos que apenas através da negação de uma hipótese anterior menos verdadeira podemos atingir uma hipótese posterior mais verdadeira; por sua vez, também esta, eventualmente, será refutada no futuro para dar lugar a um postulado mais acertado. A conclusão deste novo processo de ciência, uma nova racionalidade portanto, é a de que nunca podemos estar absolutamente convictos de que estamos certos; e aqui reside um paradoxo racional: a certeza da incerteza. Como pode haver uma certeza de se estar incerto? Apesar de absolutamente paradoxal esta noção não deixa de fazer sentido: nós assumimos e compreendemos que apesar de podermos estar convictos de determinada facto ou ideia, esse facto ou essa ideia pode vir a revelar-se como falso ou errado logo não podemos estar convictos da nossa convicção. O paradoxo resolve-se, e faz sentido, porque existe um dogma de ordem universal (a certeza) que exprime uma possibilidade de ordem humana ( de poder estar-se certo ou errado). O dogma pode manter-se como dogma precisamente porque expressando uma possibilidade não tem conteúdo prático definido: eu tanto posso estar certo como posso estar errado. Desta forma, o postulado eterno, estático e universal (uma certeza, um dogma) simultaneamente consagra a dinâmica que a complexidade e a imprevisibilidade da vida humana exigem (uma dúvida). Falamos da perpétua dúvida, a base da busca da sabedoria.

VII

No postulado 'a certeza da incerteza' pode ver-se duas coisas distintas e opostas: numa visão superficial, a ideia de que é um postulado ausente de praticabilidade e por essa mesma razão vazio de conteúdo e absolutamente inútil porque se desmente a si próprio. No entanto, na visão aqui proposta 'a certeza da incerteza' assume um carácter anterior - porque de ordem superior - ao campo da aplicabilidade prática. Deverá, portanto, servir como guia norteador de um sistema legal de organização social muito mais do que para saber de quem é a galinha que se empoleira no muro que divide as propriedades de dois vizinhos. Será muito mais útil como princípio fundador e legitimador de uma sociedade mais justa do que como forma de solução de um conflito ou de uma questão prática. Para fortalecer esta segunda hipótese podemos ver como do pretenso vazio algo pode sair: se não podemos estar certos absolutamente de nada a não ser da nossa própria incerteza será moralmente aceitável impor alguma coisa (da qual não podemos estar certos) a alguém? A justificação racional para se impor algo a alguém (que seja aceitável para o que sofre a imposição) será sempre um conhecimento que o impositor detêm e que escapa ao imposto mas, se o princípio basilar da sociedade for 'a certeza da incerteza' então o conhecimento superior (acessível a quem o alcançar) será sempre o de não se poder estar certo daquilo que se sabe. Logo, a justificação para a imposição cessa. Daqui decorre que numa sociedade fundada sobre a égide do princípio da incerteza ser forçosamente uma sociedade que queira restringir a imposição. Não serão precisos dois passos para se chegar ao princípio da tolerância: se não podemos estar certos dos nossos dogmas como podemos forçá-los nos outros ou rejeitar os dos outros que não podemos estar absolutamente certos de que estão errados? E assim chegamos à noção de que um sistema de tolerância e livre de imposição (na máxima medida do possível) será um sistema que consagre o princípio da igual liberdade: liberdade da imposição mas que, simultaneamente, não possa impor nos outros aquilo que eles não querem que lhes seja imposto. É extremamente interessante constatar que chegados a este ponto podemos conferir novamente o carácter da ligação da ordem humana com a ordem superior racional num postulado que consagra dois antagonismos em si mesmo: eu para estar livre de imposição tenho que ser impedido de impor. Ou seja: a minha liberdade termina onde começa a liberdade dos meus concidadãos. Também no princípio da tolerância tal tensão antagónica existe: como deve lidar uma comunidade tolerante com uma comunidade intolerante? Ser tolerante e, por essa mesma razão, ser aniquilada pela agressão intolerante? Ou, por outro lado, em legítima defesa, não deverá ela defender-se de tais ataques? Donde: ser intolerante para com os intolerantes é a única garantia de defesa dos tolerantes. Mais uma vez o aparente paradoxo: a tolerância exige intolerância. De um princípio de superior racionalidade como aparenta ser o princípio da incerteza derivam princípios que obedecem à mesma racionalidade, se bem que já mais próximos da aplicabilidade às leis dos homens. Assim, todos eles possuem a característica simultânea de certeza e dúvida, de defesa e de ataque defensivo, de tensão permanente e perpétua entre coisas aparentemente opostas.

VIII

Poder-se-ia tentar aplicar a mesma racionalidade a princípios mais antigos. Por exemplo, se se deve ser intolerante para com os intolerantes por que não matar-se os assassinos? No entanto, este postulado  é incompatível com o princípio da incerteza: se não podemos estar absolutamente certos da nossa certeza como punir alguém de uma forma definitiva? Da mesma forma, esta racionalização compõe um postulado que pressupõe uma acção impositiva, algo que o princípio da incerteza procura restringir. No entanto o mandamento 'não matarás' é plenamente compatível com o princípio da incerteza apenas que, como vimos, insuficiente para certos casos onde matar se exigiria. No entanto, como vimos, o princípio da incerteza com os princípios da igual liberdade e da tolerância que dele derivam (e os seus postulados antagónicos dentro de si próprios) resolvem a questão de quando matar: ser intolerante para com os intolerantes pressupõe a legítima defesa, coisa que o mandamento 'não matarás' (nunca) não pressupõe. Desta forma, o princípio da incerteza, configurando um postulado racional, porque sendo uma fonte de interpretações de justiça não deixa de poder ser também a base de uma moralidade social.

IX

Em conclusão: na procura de uma forma mais pura do conceito de justiça e utilizando a nossa própria racionalidade, perscrutando, no limite dela, um vislumbre de uma sociedade mais ordenada e mais justa, encontrámos um princípio fundador e alguns que dele naturalmente se deduzem. Nesses princípios encontramos fundamentos para uma sociedade que, não sendo perfeita (porque a perfeição não pode ser condição de uma obra de um ser imperfeito como o Homem), se aproxima mais do ideal puro de justiça. No mínimo, sendo uma sociedade fundada em princípios de não agressão será, pelo menos, à partida, uma sociedade mais pacífica, pelo que mais ordenada. Ora, uma sociedade mais ordenada será também, como vimos, uma das condições para uma sociedade mais justa. De facto, a sociedade que deriva de tais postulados é uma sociedade diferente das que a história nos ensina. Falamos, assim, de uma sociedade que, devido ao princípio da incerteza se assume como não impositiva, ou seja: liberal; falamos de uma sociedade que devido ao princípio da igual liberdade assume a necessidade de um poder mediador entre os cidadãos, ou seja: uma sociedade moderada; finalmente, falamos de uma sociedade que devido ao princípio da tolerância se assume como defensora dos seus valores tolerantes, ou seja: uma comunidade que defenda o seu modo de vida. Ao contrário do que possa parecer, qualquer semelhança entre esta sociedade e as sociedades ultra regulamentadas, amorais e avalorativas mas ditas liberais que existem actualmente será pura coincidência. Entre o nível ontológico justificado pelo princípio da incerteza e o nível advocatório liberal contemporâneo a diferença parece-me abissal. Mas isso é outra história.

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