sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A FOLIA LATENTE E PERMANENTE

"Aos realistas. Vós, homens sóbrios, que vos sentis defendidos contra a paixão e o delírio e que gostaríeis de fazer do vosso vazio um motivo de orgulho e um ornamento, considerai-vos realistas e pretendeis que o mundo é realmente como se vos afigura. Como se a realidade se patenteasse desvelada perante vós somente e vós fôsseis talvez a melhor parte dela - oh, vós, imagens queridas de Sais. Mas mesmo no vosso estado desvelado não continuais a ser naturezas extremamente apaixonadas e obscuras, se comparadas como os peixes, e demasiado semelhantes a um artista apaixonado? E, de resto, que é a «realidade» para um artista apaixonado? Não deixais de transportar em vós uma maneira de apreciar as coisas que tem a sua origem nas paixões e amores de séculos passados. A vossa sobriedade continua impregnada de uma secreta e inextinguível bebedeira! O vosso amor à «realidade», por exemplo, oh, é um «amor» antigo, antiquíssimo! Em cada sensação, em cada impressão sensível há um pedaço desse amor antigo; e igualmente uma certa fantasia, um certo preconceito, uma não-razão, uma não-sabedoria, um certo medo, e quantas coisas mais lhe deram o seu contributo e lhe teceram as malhas! Aquela montanha, ali! E aquela nuvem! Que há de «real» nelas? Abstraí do fantasma e de todo o contributo humano, vós homens sóbrios.
Se pudésseis! Se pudésseis, ao menos, esquecer a vossa origem, o vosso passado, as vossas escalas preparatórias - tudo o que em vós há de humano e de animal! Não há «realidade» para nós - nem para vós, homens sóbrios - e estamos longe de ser tão estranhos uns para os outros como pensais, e talvez a nossa boa vontade de ultrapassar a embriaguez mereça tanta atenção como a vossa convicção de serdes absolutamente incapazes de vos embriagardes."

Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência (1892)

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