I
O triunfo da norma geral e abstracta deriva no legalismo quando se defende
a ideia de que a lei tudo consegue definir. Sendo aquela soberana e fundamental, o momento em que tudo na vida das pessoas passa a ser regulado por ela não traz apenas benefícios: pelo contrário,
também faz com que se escondam os piores comportamentos por detrás da
capa da legalidade. Ao mesmo tempo, num mundo onde tudo se regula, passando o bom e o mau a serem identificados com o que está de acordo ou contra a norma, assume-se que se a lei não proíbe determinado comportamento então,
independentemente de ser bom ou mau, aquele é aceitável. Da mesma forma, se o comportamento é considerado ilegal, então ele é mau. Esta
visão tem uma causa e uma consequência: a causa é o ideal
positivista triunfante, já desde Descartes e Newton, com a transposição do campo da matemática, da geometria ou da física para o
terreno da sociedade de uma intuição (mera intuição, repare-se) de que o racionalismo humano nos
permite a todos organizarmo-nos mecanicamente numa forma perfeita e harmoniosa: se,
tal como na matemática, uma resposta para uma equação não pode ser
simultaneamente verdadeira e falsa então, também na vida, uma resposta
racional para um problema não pode entrar em conflito com outro
problema; assim, se a uma lei for racional ela deverá orientar
racionalmente a sociedade para a harmonia universal onde todos os conflitos encontram uma solução. A consequência é que, passando o ónus da soberania meramente para a lei, sendo esta aquilo que verdadeiramente nos rege, deprecia-se o instrumento que é o discernimento humano ético e moral: eu não
tenho que pensar se o comportamento A ou B é certo ou errado, apenas me
interessa se ele é legal ou não. Ou seja: o legalismo positivista
excessivo tenderá a gerar uma sociedade amoral que se preocupa com comportar-se de acordo com as leis e não em seguir uma conduta ética e moral que entenda como boa.
II
O triunfo desta visão positivista e a decadência da importância do
discernimento humano na avaliação dos comportamentos humanos detecta-se
na forma como as grandes empresas actuam defendendo os seus interesses, preocupando-se apenas em cumprir normas (ou em patrocinar normas que lhe interessam) sem qualquer noção de responsabilidade social; da mesma forma, também o cidadão individual na sua pequena função decide se
determinado comportamento é aceitável ou não na medida em que este está ou não de acordo com a norma. No entanto, acima de tudo,
em nenhuma função é mais evidente do que na actividade política: aí
tudo vale desde que se respeite a 'ética republicana', ou seja: se não é ilegal nada se pode apontar ao político. Se esta característica já é perniciosa em si mesma tem ainda uma agravante: cada vez que se antevê que, torneando, interpretando - muitas vezes
de forma abusiva - a lei escrita, é possível ocorrer determinado comportamento lesivo do bem público, seja ele de uma empresa, de um cidadão ou de um político, para se resolver o problema, lá vem uma nova lei ou um novo
regulamento. Ao tentar aclarar-se o espírito da lei acaba-se a afogá-lo em normas sucessivas que, pelos mesmos motivos, cada vez mais potenciam a dupla interpretação. Naturalmente, depois, mais interpretações e
mais reinterpretações se fazem gerando um emaranhado de leis confusas, apenas
acessíveis aos especialistas, onde quem dominar a especialidade leva o
seu intento a bom porto e quem não a dominar é inevitavelmente derrotado. No final, em
nome do povo e do poder do povo, fazem-se todas essas leis que acabam
por configurar um sistema legal ultra-complexo ao qual apenas os
poderosos retiram vantagens porque apenas eles possuem os recursos que
permitem contratar os especialistas. Pelo caminho se os comportamentos
em julgamento são bons ou maus nem sequer interessa, nem sequer se sabe,
apenas se estão conforme a lei ou não é o que os juízes apenas estão autorizados a julgar.
Ou seja: quanto mais leis existirem, menor é a capacidade efectiva de aplicar-se a
justiça.
III
A outra questão que é notória é que, compreendendo que não existe uma fórmula mágica para a resolução dos
problemas humanos, infere-se obrigatoriamente que não pode uma lei geral e
abstracta ser capaz de, cegamente, discernir o que está certo do que
está errado: apenas o discernimento humano pode definir a fronteira
entre o que é um comportamento bom e o que configura um comportamento
errado. Essa fronteira, sempre subjectiva, não é por isso universalmente
válida pois não podemos esperar que um aborígene Australiano, uma
católica Polaca ou um nova iorquino new age a definam da mesma
forma: variando a cultura de uma comunidade, assim varia o seu sentido moral de
certo e errado. A moral social, é portanto, relativa a cada comunidade,
fazendo por essa razão variar o entendimento sobre a forma como essa
mesma comunidade se deve organizar. Assim, como não há uma lei universal
acessível aos humanos, ou pelo menos uma que todos aceitem como verdadeira, sobra a
noção de que é sempre, por mais leis que se façam, o espírito moral de
cada comunidade que se encontra por detrás dessas mesmas leis. Ora, não
sendo outra coisa além de um código moral (algo que o progressismo na sua
pretensão universalista multicultural tende a rejeitar em nome de um pretenso universalismo racionalista) que alimenta o
sistema legal de uma comunidade, como poderemos nós esperar que a
interpretação desse sistema legal seja feita de outra forma que não a
interpretação do espírito que preside à norma? Naturalmente assim
é e por isso mesmo as grandes disputas não se fazem acerca do que
determinada norma diz mas acerca do que essa mesma norma significa.
E assim compreendemos que a legislação desmedida acaba por ser inútil
pois a discussão acerca do seu próprio significado - variando a
interpretação desse significado consoante o interesse das partes
envolvidas - é eterna. Neste sentido, assumindo tal coisa como uma fatalidade da
vida, forçosamente se terá de aceitar que o trabalho do juiz - ou
do júri - deveria ser, como intérpretes do sentido de certo e errado de
determinada comunidade, aferir se determinado comportamento é correcto
ou não, ou seja, se está de acordo com o código moral e ético da comunidade, muito mais do que meramente aferir se determinada lei (cujo único
propósito a priori seria garantir um comportamento correcto) é
cumprida ou não: se é verdade que a lei em excesso prejudica a justiça,
também é verdade que a lei não basta à justiça: o que é justo deriva do que a comunidade entende como aquilo que é bom, logo a aferição se algo está de acordo ou não com a lei não é eficaz a não ser que leve em consideração se esse algo está de acordo ou não com o que é tido como bom. Em conclusão: um juiz apenas pode correctamente interpretar o que é justo se for um fiel intérprete do que a comunidade entende que é bom.
IV
Estes problemas de base têm consequências ainda mais nefastas: o emaranhado legal que deriva directamente da ambição de tudo legislar
motivada pela crença de que o Homem tudo pode controlar (progressismo), oferece uma posição de
vantagem aos poderosos que têm acesso ao sistema: uma empresa com muitos recursos e muitos advogados pode facilmente esmagar o pequeno indivíduo sem meios porque, não só a nebulosa regulamentar cega quem nela não se sabe movimentar, como os juízes estão limitados a julgar se determinadas normas foram cumpridas ou não (e não se garante que estas sejam no interesse dos cidadãos). Mais grave: principalmente este triunfo legalista oferece uma posição de vantagem ao maior de todos os
poderosos: o Estado. É o Estado que controla o aparelho legal, adapta-o
às suas necessidades e quando alguma dessas necessidades não é
satisfeita rapidamente, porque legislar é banal e em tanta norma e
regulamento mais uma lei ou duas passa despercebida, lá vem mais uma
portaria ou um decreto alimentar o monstro legalista. E perante o
monstro, tal como já no final do Século XVIII Burke avisava, o cidadão individual, desprotegido, incapaz de fazer face à
complexidade ou sem meios para a influenciar, vê-se sujeito às maiores
obrigações e sujeições legais, as quais não compreende, ou sequer aceita,
mas contra as quais nada pode. Por outro lado, aqueles que têm acesso à
máquina do Estado, quer por dela fazerem parte, conhecerem alguém que a
ela tenha acesso ou, como as empresas poderosas e os que têm acesso a grandes meios financeiros, porque podem patrocinar ou influenciar a inclusão de normas que lhes sejam benéficas, todos estes ganham vantagem e melhor e mais rapidamente vêem os seus problemas
resolvidos. Claro está que este acesso à máquina legalista tem custos e
por isso rapidamente se fixa um preço, mesmo que de ocasião e informal, para tais serviços. Ou seja: o
excesso de leis beneficia tanto a desigualdade no acesso à justiça bem
como a corrupção.
V
A abissal diferença de poder entre o Estado e o cidadão é alimentada
pelo excesso legalista: a lei é o caminho de comunicação directa entre
os dois, pois é através dela que o primeiro regula os segundos tal como é
através dela que os segundos se defendem dos abusos cometidos pelo
primeiro, bem como dos cometidos entre eles próprios. Desta forma, quanto
maior for o monstro legal e menor for a capacidade dos cidadãos
controlarem esse mesmo monstro legal, maior é capacidade de o Estado,
sem escrutínio, controlar eficazmente a vida dos cidadãos. De igual
modo, cada lei ou decreto, cada norma ou regulamento, cada portaria ou
directiva é mais uma forma de o Estado interferir directamente na vida
dos indivíduos. Ora, como a lei é a única defesa que os indivíduos têm
em relação à interferência do Estado nas suas vidas privadas e, como já vimos, quanto
maior for o monstro legalista menor é a capacidade de os cidadãos terem
acesso a essa defesa, então podemos concluir que o excesso de leis
prejudica também a defesa da liberdade individual.
VI
Infelizmente, o excesso de leis é apenas uma das várias consequências do
ideal progressista e positivista que vai norteando a sociedade
contemporânea. O ideal de que o Homem sendo imperfeito carece de
melhoramentos e que esses melhoramentos cabem ao Estado conduzi-los é o
arauto máximo desta ideologia que une o centro-esquerda, a
esquerda e a extrema-esquerda numa coincidência de objectivos: a
resolução dos conflitos sociais através da "descoberta" das soluções
para os problemas que atravancam a sociedade, a utilização do progresso
tecnológico como arma para alcançar tal objectivo, a igualdade como o
valor máximo de uma sociedade perfeita, a uniformização cultural (apesar
do apelo à "diversidade" aparentar o oposto) como forma de harmonização
conflitual universal e a rejeição da diferença como forma de
identificação, seja ela individual (religiosa, ideológica ou até
sexual), social (recusa da hierarquia) ou cultural (multiculturalismo).
Para esta corrente ideológica - apesar de se assumir como
pós-ideológica - as diferenças são para se aniquilar, as discriminações
são a sua bandeira e a igualdade de facto o seu argumento. Ora,
não há instrumento mais poderoso para tais desígnios do que a lei e o
acesso ao monstro legalista: é este instrumento que dá poder ao Estado, é
este instrumento que sujeita os indivíduos e é este mesmo instrumento
que regula a sociedade e os seus comportamentos. Como vimos, não há lei
que não seja moral e ideológica (partes I e II), portanto é através da
lei que a ideologia progressista igualitária se impõe. Ou seja, com o
advento contemporâneo desta sociedade hiper-regulamentada ao invés de
serem as leis a reflectirem a moral (a fronteira entre o bom e o mau
comportamento) da sociedade, é a sociedade que se vê amordaçada por um
estatismo legalista que, mostrando uma face protectora (o Estado
paternal) e solidária (o Estado Social), esconde uma determinada
ideologia que, a pouco e pouco, vai moldando a sociedade para um rumo
novo. Como o estatismo enfraquece a sociedade, assim o progressismo vai
construindo o seu novo Homem.
VII
Os problemas desta tentativa progressista de construção de um novo homem
e a consequente regulamentação de todas as cambiantes da vida humana
são muitos variados: estatismo, corrupção, violação das liberdade
individuais, endividamento (o estatismo carece de meios), empobrecimento,
enfraquecimento da sociedade, perda de valores morais sociais, etc. No
entanto, o maior dos problemas, como se estes já não fossem mais do que
suficientes - e evidentes como se pode ver pelo actual estado das
coisas -, é a sua completa impraticabilidade. No fundo, aquilo
que acaba por dividir a esquerda da direita é a noção ontológica que
cada uma tem sobre o Homem: onde a esquerda progressista vê um animal imperfeito
que no seu optimismo urge aperfeiçoar e resolver, a direita conservadora e liberal vê um
animal imperfeito que será sempre imperfeito pois não podem seres
imperfeitos resolverem as suas imperfeições e atingirem a perfeição.
Assim, para uma visão conservadora e liberal, o caminho do progresso deve ser orientado para o bem-estar e a
força da comunidade deve residir na sociedade e nos indivíduos, os
únicos que podem - e devem - ser responsabilizados pelos seus próprios
erros: um indivíduo erra e sofre as consequências; o Estado erra e todos sofrem as consequências.
Em suma: liberdade implica responsabilidade. A lei é fundamental quando tida como garantia de direitos e liberdades dos cidadãos; passa a ser perniciosa quando assume a função de moldar a sociedade a uma determinada interpretação do que a sociedade deve ser. Pelo contrário, a interpretação da lei é que se deve subjugar àquilo que a sociedade, como um todo, vai pensando. Dessa forma, evitam-se grandes revoluções: ao livre alterar dos entendimentos da sociedade sobre A ou B mais facilmente a justiça reflectirá essas alterações se não houverem monumentos e monumentos de normas e regulações para serem alterados. Com o triunfo do positivismo na imposição da regulamentação excessiva sobre a sociedade e, ao mesmo tempo, com o seu falhanço devido à sua inerente impracticabilidade, caminha-se para um garrote legalista que conduz a sociedade para rigorosamente lado nenhum. Uma sociedade dependente do Estado é, portanto, uma sociedade
enfraquecida que corre o enorme risco de se auto-destruir quando o rumo
traçado, como todos, se revelar finalmente inadequado, insuficiente ou
simplesmente errado: assim foi com todos os sistemas políticos que
fizeram a sociedade vergar-se perante o poder do Estado e um desígnio
que entendiam superior. Neste sentido, a liberdade e a responsabilidade
individuais serão sempre as pedras basilares de uma comunidade forte e
saudável. Tudo o resto são falácias, as quais, que nem cantos de sereias
vendedoras de facilidades, confortos e certezas inexistentes e
infantis, vão infelizmente seduzindo os mais incautos e desprotegidos. Isto, claro, até ao dia em que a realidade, como sempre, lhes bater à porta: normalmente sobre a capa da miséria e da sua fiel companheira, a violência.
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